A vida clandestina em "4 meses, 3 semanas e 2 dias"
Filme com poucos recursos financeiros (por volta de US$ 600 mil) e que ainda aborda um árido tema, o aborto clandestino. Não é a fórmula do sucesso hollywoodiano, não é mesmo? Estamos falando de 4 meses, 3 semanas e 2 dias (2007), roteiro e direção de Cristian Mugiu, ganhador da Palma de Ouro em Cannes e indicado ao Globo de Ouro na categoria de melhor filme estrangeiro.
Lembro-me muito bem de quando vi esse filme em um Festival Internacional de Cinema em Brasília. Não consigo esquecer tudo que senti, a apreensão, a tensão de ser pega, o perigo de estar na clandestinidade e a vontade de ver tudo aquilo resolvido, mesmo sabendo que as cicatrizes ficariam ali a reclamar durante muito tempo. Obra cinematográfica surpreendente e concreta demais.
Otília e Gabita - humanas, demasiado humanas |
SINOPSE: Duas moças na faixa dos 20 anos dividem um quarto numa república de estudantes em Bucareste. Como todo estudante, elas não têm grana. A ação se passa em 1987, nos últimos anos da ditadura comunista de Nicolau Ceaucescu, quando produtos ocidentais como cigarros e chicletes só podiam ser encontrados no atuante e caríssimo mercado negro. A história é narrada quase em tempo real. Uma das meninas está grávida e deseja se submeter a um aborto ilegal, que só pode ser realizado num hotel vagabundo e por um médico asqueroso, que não hesita em tirar proveito da condição de desespero das mulheres.
Sr. Bebê, Otília e Gabita |
Cristian Mungiu escreveu o roteiro do filme em apenas um mês, baseado em uma história verídica que ouviu enquanto era estudante. O autoritarismo do regime militar do ditador Ceaucescu permeia toda a narrativa. A trama enfatiza a história de duas amigas, Gabita (Laura Vasiliu) e sua amiga Otilia (Anamaria Marinca - atuação impecável), que percorrem uma via crúcis dolorosa e amarga para fazer um aborto no mercado negro. Mungiu preferiu passar a largo de discussões acaloradas (e panfletárias) acerca de posições políticas e acerta em cheio: não há arestas, o que resta são imagens que revelam o interior mais puro dos personagens, seus medos, fraquezas e hesitações. As reflexões não são lineares e unívocas, o aborto clandestino é a ponta das discussões sobre moralismos e soluções fáceis para “eliminar” o sintoma social. Aparenta, em si, ser mais uma obra que crava suas garras na hipocrisia e naquilo que há de mais frágil e deteriorado nas relações humanas, tal qual o regime político ruído da época.
A atuante Otília e a impotente Gabita |
A experiência da clandestinidade |
Construído em planos longos e silenciosos – o que aumenta a tensão e a claustrofobia da vida clandestina buscada pelas duas amigas – e com uma fotografia escura e de poucas cores, todas sem vida, nesse universo pesado, árido e triste, o que transparece qual é a realidade representada pelo diretor. Por mais dolorido que seja, o que Cristian Mungiu expõe é uma situação palpável, lastimavelmente verdadeira, as personagens são distantes (mesmo sendo amigas íntimas); e até mesmo a câmera é distante e pouco receptiva.
Não temos acesso a informações completas, conhecemos tão-somente fatos e personagens, isso em um ritmo descompromissado, por meio de diálogos e ações aparentemente gratuitos. Da mesma forma, eventos como um estupro são sempre absolutamente dominados – sem vê-los, em qualquer aspecto que seja, nos basta saber que existam. Temos acesso apenas àquilo que é julgado necessário.
O terror da clandestinidade |
Longe de abordar posicionamentos, aqui, o aborto é um crime e existem modos ilegais de praticá-lo – o importante é o “como”. Mais do que descobrir o que buscam as amigas Gabita e Otilia, quando se encontram juntos as duas e o responsável pelo aborto, sr. Bebê (Vlad Ivanov), acompanhamos um longo relato de toda a situação e do procedimento. Em diálogos tensos, graves, o que se instaura são as posições – de um lado, as amigas inseguras e desesperadas; do outro, um homem que se impõe e demonstra constantemente seu poder. Implacável, aquele a quem se recorreu para fazer o aborto, embora praticamente sem se exaltar fisicamente, por sua posição, exercerá grande poder psicológico. A Gabita, grávida e sem alternativa e a Otilia resta ceder.
Nessa realidade, nós, junto às personagens, afundamos pouco a pouco, sem grandes esperanças.
Diálogos gratuitos geniais! |
Após o acontecido, o aborto consumado, também não há paz, apenas ruas escuras e intimidantes. A realidade persiste sólida e cinza, tão concreta que nos corta. Mais que isso, no momento em que Otília vomita na rua (após discutir com seu namorado o que faria caso estivesse na posição da amiga) o que temos é um triste vislumbre de um grande ciclo. De um mesmo evento que se repete infeliz e inexoravelmente para jovens diferentes, imersas, sem fuga.
O despojamento técnico ajuda a desnudar por completo a essência do filme: uma história pequena, humana, narrada com grau razoável de distanciamento emocional, com muito respeito à dor e aos sentimentos das personagens.
Vale a pena! Todos devem sentir esse filme!
FICHA TÉCNICA
4 MESES, 3 SEMANAS E 2 DIAS (4 LUNI, 3 SAPTAMANI SI 2 ZILE) Romênia, 2007
Direção e roteiro: CHRISTIAN MUNGIU Fotografia: OLEG MUTU Edição: DANA BUNESCU Desenho de produção: MIHAELA POENARU Elenco: ANAMARIA MARINCA, LAURA VASILIU, VLAD IVANOV, ALEXANDRU POTOCEAN Duração: 113 minutos Site oficial francês: clique aqui
Direção e roteiro: CHRISTIAN MUNGIU Fotografia: OLEG MUTU Edição: DANA BUNESCU Desenho de produção: MIHAELA POENARU Elenco: ANAMARIA MARINCA, LAURA VASILIU, VLAD IVANOV, ALEXANDRU POTOCEAN Duração: 113 minutos Site oficial francês: clique aqui
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