A obsessão pela honra levada às últimas consequências em "Os Duelistas" de Ridley Scott
Os Duelistas, 1977, primeiro filme de Ridley Scott ( Blade Runner, Thelma e Louise), uma produção caprichada de David Puttnam. Fotografia, direção de arte, música, tudo é de tamanho bom gosto e requinte que resultam numa obra de arte, esteticamente falando, do cinema. Uma das maneiras de observar a beleza deste filme pode ser conseguida utilizando a tecla "pause" do controle remoto: cada cena de Os Duelistas, parada, lembra um quadro impressionista dos mais belos.
Mas toda esta beleza não é "sem sentido". É apenas uma conseqüência de uma reconstituição de época perfeita. O primeiro longa-metragem de Scott passa-se nos bucólicos campos rurais da França do fim do século XVIII e início do século XIX, que corresponde justamente ao início, apogeu e declínio da vida política de Napoleão Bonaparte.
Era tempos de esplendor da natureza - que ainda não sofria, pelo mesmo não de maneira drástica, pela ação do homem - e de soldados trajando belos uniformes de seus respectivos regimentos. Portanto, o visual absolutamente encantador não é apenas um recurso estético, mas sim, uma correta contextualização ao tempo enfocado, o que torna o filme admirável também por historiadores, que apreciarão, e muito, a tanto cuidado na retratação de todo um ambiente de quase duzentos anos atrás.
É claro que nem da bela fotografia vive este filme excepcional, a disposição nas locadoras. Há um roteiro singular, baseado num conto de Joseph Conrad (de Nostromo e O Coração das Trevas, entre outros), chamado The Duel (em português, O Duelo). De enredo aparentemente simples, até prosaico, ele possibilita que o filme proporcione uma abordagem brilhantes de diversos temas invulgares, através da união entre diálogos e imagens. A honra, o absurdo, a obsessão, o sentimento de "vazio" que a vida, às vezes, nos provoca e a impotência e incapacidade do homem em tentar escapar e fugir de situações marcantes do passado nunca foram exibidos no cinema com tamanha força.
Trata da história de uma "questão" entre dois arrogantes e orgulhosos soldados franceses do exército de Napoleão. Para resolvê-la, os dois travam, no decorrer do filme, diversos duelos, prática bastante comum nos tempos medievais e que ainda era praticada na segunda metade do século XVIII em algumas partes do mundo. O motivo dos duelos ninguém sabe explicar muito bem o porquê, de tão superficial: o então tenente Armand D’Hubert (Keith Carradine, de Amantes de Maria, o irmão do astro de Kung-Fu, David Carradine, fazendo com certeza o seu melhor papel no cinema) tem a incumbência de localizar o orgulhoso e teimoso tenente Gabriel Feraud (Harvey Keitel, de O Piano e Os Bons Companheiros, admirável), para que este seja preso no quartel do exército por ter duelado e ferido gravemente o sobrinho do perfeito de Strasburgo. D’Hubert o localiza num bordel e conta-lhe o motivo de sua presença.
Feraud encara a atitude de D’Hubert um insulto, uma humilhação perante os outros soldados presentes no local e exige retratar-se através de um duelo com D’Hubert. Este, a princípio contrariado, acaba aceitando em nome de um sentimento e valor de época: a honra.
A partir daí, durante mais de 20 anos, os dois passaram a duelar, com pausas periódicas de alguns anos, sempre pondo em risco suas vidas em cada duelo. A iniciativa sempre é de Feraud. Apesar de pertencerem a regimentos diferentes do exército, os dois acabam se encontrando em épocas de batalhas. Isto para desespero de D’Hubert, o mais lógico e aparentemente "sensato" dos dois, que acha tudo um absurdo, mas que não foge do duelo em nome da honra.
Os Duelistas não é um filme de luta e pancadaria.
Ele possui vários temas. A honra, talvez, seja o seu principal.
Na época retratada do filme, era um valor, um sentimento que se levava em conta na hora de tomar decisões. No filme, D’Hubert parece odiar os duelos com Feraud. Ambicioso e com fervorosa obediência e interesse aos objetivos do imperador Bonaparte, por diversas vezes D’Hubert demonstra claramente que a idéia de colocar sua vida cheia de perspectivas em risco por causa de um questão absurda o desagrada.
Conforme os duelos vão se sucedendo, D’Hubert escala postos no exército, tornando-se cada vez mais respeitado. Alcança o posto de general (coisa que Feraud também conseguira). Cada vez mais, fugir de um duelo seria o seu fracasso, a sua desonra, embora seus próprios superiores no exército vejam os duelos como uma "tolice", o único senão no "currículo" de D’Hubert. Mas, para D’Hubert, a imagem que os outros companheiros de caserna tem de sua pessoa é muito importante. No decorrer do filme, percebe-se que para D’Hubert a honra é mais importante que romances, mais forte que a comodidade de uma vida segura e que a liberdade do ser humano em recusar aquilo que não gostaria de realizar.
Em certa momento do filme, é pedido a D’Hubert a definição de "honra". Segundo o próprio soldado, numa cena que ganha ares cômicos que só quem assiste o filme entende, a honra é "indescritível".
Há ainda outros temas, exibidos na tela com singular habilidade: o absurdo que cerca D’Hubert, preso num ideal de valores que o tira a liberdade de pensar e agir diante de Feraud. Os duelos acontecem por um motivo absurdo, superficial, mas que impede D’Hubert de negá-lo, mesmo tendo consciência disto.
Este tema lembra, particularmente, alguns livros de Albert Camus, em especial O Estrangeiro, que conta a história de um sujeito aparentemente normal que mata uma pessoa por causa do "calor". Outro ponto forte do filme é como ele enfoca o sentimento de obsessão, no caso, obsessão que toma a cabeça de Feraud, para quem a participação dos duelos é o motor da sua vida, o sentido desta, o ar que respira. Sem os duelos, tudo para Feraud parece ser vazio.
Os duelos proporcionam cenas belíssimas. O duelo a cavalos, por exemplo, é um momento grandioso, de rara beleza estética no cinema, que desperta muito ansiedade a cada passo que os cavalos dão, um ao encontro do outro. Durante esta passagem, todos os duelos até então realizados passam na mente de D’Hubert, a poucos instantes dele se defrontar com a morte.
Outro duelo que merece destaque acontece durante a ocupação dos exércitos napolêonicos na Rússia. É um momento antológico do filme. A ocupação ocorre na época do rigorosíssimo inverno russo. O impacto das cenas de seres humanos sofrendo diante do frio é grande . Fiéis a obediência servil a um líder, que, até então, empolgava os franceses, os soldados tentam sobreviver e, dois deles, ainda encontram motivação para duelar.
O elenco secundário de Os Duelistas também está perfeito. Ele é composto, principalmente, por atores de teatro ingleses, como Edward Fox (de O Dia do Chacal) e Albert Finney (de Assassinato no Expresso Oriente e A Sombra do Vulcão). O figurino é de primeira linha, assim como a montagem.
Enfim, é um filme perfeito. Pode-se discutir uma certa frieza de algumas cenas. É que muito dos sentimentos da cada personagem são exibidos sutilmente, através de interpretação contidas, porém perfeitas. Mas, mesmo a frieza vira qualidade numa obra tão soberba. Pouco conhecido, o filme é admirado por poucos cinéfilos. Estes costumam acha-lo o melhor de Scott, diretor de obras importantes do cinema moderno, como Blade Runner. Os Duelistas, porém, é mais do que o melhor de Scott. Descobri-lo é dever dos apreciadores do cinema.
Por Fabio Bense do Cine Debate
OS DUELISTAS ( The Duellists, Inglaterra, 1977)
DIREÇÃO: Ridley Scott
ELENCO: Keith Carradine, Harvey Keitel, Albert Finney, Edward Fox, Cristina Raines, Tom Conti, 101 min
Download no Supercine Anarquia
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